terça-feira, 2 de agosto de 2011

Edifício no Minhocão

“Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humilde – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.”
-Clarice Lispector, A Hora da Estrela

Sempre que passo pelo Minhocão, sinto saudades de Olívia e dos seus olhos negros como jabuticabas, do seu sorriso amigável e carinhoso (o qual só fui descobrir tempos depois de conhecê-la) e do seu corpo magro, maltratado, porém apaixonante. Olívia tinha uma beleza quase como a de uma Audrey Hepburn paulista.
Não sei se é saudade o nome do sentimento que me arrebate o coração nessa hora. Quem sabe o nome mais adequado seja dó, pena. Pena de quem? Mais provável que seja de mim mesmo do que da própria Olívia. Afinal, apesar de não saber ao certo o seu fim, aposto que foi ela quem saiu ganhando.
O Elevado Presidente Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão, significa tanto para mim porque foi lá que os momentos mais felizes e sombrios da minha vida tão medíocre aconteceram. Lá, em um discreto apartamento cujas janelas estão no mesmo nível dos carros, desenrolou-se o clímax da minha existência vadia. Desde então, creio ser o único que vê charme naquele lugar, especialmente no final de tarde,  quando o pôr-do-sol  se confunde com a poluição atmosférica por entre os prédios do centro da metrópole.
Acontece que, numa rua qualquer e num dia qualquer, ouvi gritos estridentes vindos do bar da esquina logo em frente. Primeiro pensei que era só uma jovem que exagerou no álcool, só que os gritos se tornaram de desespero e continuaram até que tomei coragem pra ver o que era.
De fato, a moça estava no bar, acompanhada por um homem muito mais velho e barrigudo, que batia nela sem censura e sem motivo aparente. Descobri mais tarde que só batia porque gostava de ouvir seus berros, já que, na cama, não conseguiu fazê-la gritar de prazer. No bar, alguns tentavam apartar a briga, enquanto outros continuavam lá sentados fingindo nada perceber, como se aquela fosse uma cena comum. Os garçons, então, seguraram-no pelos braços até que os dois se acalmaram.
A jovem , então, ousou sentar na cadeira ao seu lado e continuou a comer um hambúrguer. Chorava. Saía sangue proveniente de um corte na sobrancelha. Quando terminou de comer, balbuciou algumas palavras para ele e saiu do bar.
Obviamente, segui-a e perguntei seu nome. Olívia. Disse que estava acostumada porque é sempre assim e que estava a caminho de casa.
Bem, eu sei que há mulheres que vendem seu corpo para conseguir um bom jantar, e suspeitava de que era esse o caso. Perguntei à coitada quem era aquele cara. Na rua mesmo, sem sequer saber meu nome, contou-me sem nenhum traço de vergonha que aquele era seu tio com quem morava e ia pra cama quando o mesmo estava com vontade. Em troca, o safado oferecia teto, chuveiro e comida (o que para ela já estava bom demais).
Naquele dia, levei-a para o meu apartamento bagunçado no Minhocão porque o sangue que jorrava da coitada já estava me preocupando. Ofereci um copo d’água, um pão, um colchão e um cobertor. E lá na sala ela chorou até dormir.
Durante a primeira noite, me questionei se era seguro colocar uma desconhecida dentro da minha casa, mas ela era tão ignorante que nem sabia o que era roubar. Era tão tonta que nunca saberia usar uma arma. Sua expressão era tão inocente que não apresentava risco algum de roubo, assassinato, homicídio, suicídio, seja lá que crime. Pouco sabia eu que ela me roubaria o coração e a dignidade masculina, mataria meu ego, esfregaria a minha bondade e compaixão no asfalto mais áspero. Naquela tarde, a beleza melancólica de Olívia me convenceu de que estava na hora de me tornar um homem com uma experiência um pouco menos vaga e comum do que as que eu já havia vivido.
Passávamos noites e noites conversando. Ela me contava seus sonhos, medos e anseios, eu fazia o mesmo. Contei como meu trabalho era tedioso. Ela ouviu tudo com atenção e achou uma maravilha o dia em que a contei sobre a viagem que fiz ao Rio de Janeiro no mês passado. Olívia também me falou, chorosa, do dia em que seus pais a abandonaram - apesar dela não se lembrar de nada – e ela teve que morar com seu tio, que nem o nome sabia. Disse-me que aos doze anos já não era mais virgem, mas que na época achava que isso não tinha problema algum. Afinal, nunca convivera com ninguém além dele, ou seja, não tinha um modelo de vida com o qual iria se comparar.
Em uma noite chuvosa (já havia um mês que morávamos juntos), Olívia deixou a sala porque tempestades lembravam-na do passado, ou algum outro motivo igualmente piegas. Sentou na minha cama e pediu para que eu a distraísse. Hesitei por um momento, mas a beijei. Foi um beijo um tanto quanto violento, inesperado. Logo, durante a tempestade ruidosa, fizemos amor. Chamo isso de amor, não de sexo ou qualquer outro nome que possa parecer obsceno. Pois obsceno era o que o tio a forçava fazer. Não, o que fizemos era puro, verdadeiro e saudável.
Durante essa mesma noite, lembro-me de assisti-la admirando a cidade pela janela. Essa visão está tatuada na minha mente. Parecia uma sílfide, o cabelo voava dando a ela um charme etéreo. Se existe alguma verdade no mundo, ela se parece com Olívia, nua, observando o viaduto vazio pela janela.
Três meses se passaram e nossa vida estava tomando um rumo mais natural. Já estava quase me esquecendo do passado da moça. Já não tinha pudor ou medo de dizer alguma coisa que a machucasse, tampouco a considerava o mistério que era antes. Éramos um casal comum. De manhã eu ia trabalhar e ela passeava pela rua, no fim da tarde eu levava o jantar e ficávamos conversando até tarde.
Em um dia desses, cheguei em casa com spaguetti e vinho tinto para a janta. Queria comemorar, pois tinha sido promovido. Todavia, ao abrir a porta, deparei-me com um bilhete em cima da mesa. Em traços incertos, sua letra ignorante me informava que seus pais estavam vivos e a queriam de volta – o que duvido que tenha sido verdade. A cachorra vadia disse na carta que estava partindo e que não iria mais voltar. Pediu desculpas, como se fossem servir de alguma coisa. As palavras me atingiram como o vento frio e cortante que vinha da janela aberta, meu peito foi estraçalhado pelas suas garras egoístas.
Seja lá qual foi o motivo, Olívia fugiu e me levou junto. Tudo o que deixou foi o corpo oco de um homem que se doou demais, um colchão e um cobertor.

17 jul 2011

Fonte da imagem: fotógrafo desconhecido. Disponível em: http://pipocaglobal.com/?p=2667 Acesso em 2 ago 2011.

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